A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENGENHARIA SANITÁRIA E AMBIENTAL – SEÇÃO RIO GRANDE DO SUL (ABES-RS) vem a público expressar sua profunda solidariedade com as consequências do desastre ambiental ocorrido em maio de 2024. Nossos pensamentos estão com aqueles que perderam entes queridos, suas casas e seus meios de subsistência. Esta carta tem como objetivo acolher e apoiar a população gaúcha, além de apresentar uma análise crítica e propositiva sobre a gestão dos recursos hídricos, saneamento e medidas para prevenir futuros desastres.
A TRAGÉDIA E SUAS CONSEQUÊNCIAS
Desde o final de abril até o final de maio de 2024, chuvas intensas devastaram o Rio Grande do Sul, resultando em destruição generalizada. Cidades foram destruídas, pontes arrastadas, estradas interrompidas, áreas urbanas e rurais inundadas, mais de 600 mil desabrigados e mais de 170 mortos. O impacto social e econômico é imenso, e será sentido por muito tempo. Destaca-se que 80% do PIB do Estado é gerado no eixo, fortemente impactado, entre a Capital e a Serra Gaúcha, passando também pelo vale do Taquari.
As evidências indicam que, apesar da intensidade extrema dos eventos climáticos, muitas das estruturas poderiam e deveriam ter sido revisadas, mantidas ou refeitas para mitigar os impactos. Há uma necessidade consequente de investigar eventuais negligências que possam ter contribuído para a magnitude dos danos observados. Os óbices nessa perspectiva vão de encontro a diversos princípios jurídicos, constitucionais e infraconstitucionais. É importante salientar que as chuvas ocorridas em 2023 já tinham evidenciado falhas de manutenção em equipamentos ou estruturas, bem como alertado para áreas onde existiam edificações, mas que não tinham a mínima proteção contra cheias ou estavam suscetíveis a desmoronamentos.
A IMPORTÂNCIA DA GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS
O Rio Grande do Sul possui há 29 anos uma legislação avançada e precursora no Brasil sobre recursos hídricos, reforçada por princípios de sua Constituição Estadual. No entanto, a implementação dessa política e do Sistema Estadual de Recursos Hídricos têm sido deficientes. Os Comitês de Bacias Hidrográficas, que possuem caráter deliberativo e já estão constituídos no Estado, não têm recebido a devida atenção. Além disso, e como um fator agravante, as Agências de Região Hidrográfica, que deveriam exercer um papel técnico fundamental no Sistema Estadual de Recursos Hídricos, permanecem não implementadas após quase três décadas.
Esse conjunto de estruturas de gestão, se já estivesse devidamente operativo, teria um papel crucial na mitigação das causas e consequências de eventos extremos, como secas e enchentes, assim como está previsto na legislação. A plena implementação dos instrumentos de outorga e cobrança poderia, por exemplo, ter melhorado significativamente as condições da rede de monitoramento, permitindo previsões mais precisas e ações preventivas mais eficazes. Além disso, recursos advindos do instrumento de cobrança também poderiam ter sido utilizados em uma série de medidas de mitigação dos eventos climáticos extremos, tanto de enchentes quanto de estiagens. Estas medidas não iriam solucionar todas as mazelas e consequências de um evento tão extremo quanto esse pelo qual passamos, mas certamente poderiam amenizá-lo.
FRAGILIDADES NOS SISTEMAS DE SANEAMENTO
Os recentes eventos destacaram fragilidades críticas nos sistemas de saneamento do estado, em síntese destacados a seguir.
1. Sistemas de Abastecimento de Água
A estabilidade e segurança do abastecimento de água foram severamente comprometidas. Em muitas áreas, a infraestrutura de distribuição foi danificada, resultando em interrupções no fornecimento de água potável. É essencial revisar e fortalecer essas infraestruturas para garantir resiliência em situações de emergências.
2. Sistemas de Gerenciamento de Esgotos Sanitários
As redes de esgoto, em muitas regiões, não conseguiram lidar com o volume de água, resultando em transbordamentos e contaminação de áreas urbanas e rurais. A modernização e manutenção adequada desses sistemas são vitais para prevenir problemas de saúde pública e ambientais em eventos futuros.
3. Sistemas de Gerenciamento de Resíduos Sólidos
A coleta e o gerenciamento de resíduos sólidos foram interrompidos, agravando os riscos à saúde pública. É necessário desenvolver planos de contingência robustos para a coleta e disposição de resíduos em situações de desastre, garantindo a continuidade dos serviços e a proteção da saúde pública.
4. Sistemas de Drenagem de Águas Pluviais
As infraestruturas de drenagem foram insuficientes para lidar com o volume de precipitação, resultando em inundações significativas. Melhorias na capacidade de drenagem e manutenção regular são imprescindíveis para minimizar os riscos de inundações urbanas. Sistemas de proteção contra cheias, sem a devida atenção e manutenções preventivas e preditivas, falharam causando enormes prejuízos humanos, materiais e imateriais.
RECOMENDAÇÕES E AÇÕES PROPOSITIVAS
Nosso objetivo é apresentar críticas construtivas e propostas para fortalecer a resiliência do Estado frente a futuros desastres climáticos. Propomos as seguintes ações imediatas e de longo prazo:
1. Avaliação Técnica Independente
Formação de uma comissão técnica independente para avaliar os sistemas de prevenção de enchentes e elaborar recomendações para evitar a repetição dos impactos observados. Destaca-se o fato de que Rio Grande do Sul, assim como o Brasil, são portadores de significativo conhecimento técnico e científico acerca do tema, com profissionais, universidades e instituições altamente capacitadas, tais como ABES e ABRHidro (Associação Brasileira de Recursos Hídricos), e certamente aptas a contribuir com a busca de soluções.
2. Fortalecimento da Gestão de Recursos Hídricos
Implementação imediata e completa das Agências de Região Hidrográfica, conforme previsto pela legislação gaúcha, e fortalecimento do Sistema Estadual de Recursos Hídricos, com a implementação de todos os instrumentos previstos pela Política Estadual de Recursos Hídricos.
3. Infraestrutura e Monitoramento
Melhoria e manutenção da infraestrutura de proteção contra cheias, bem com a expansão da rede de monitoramento hidrológico, fluviométrico e meteorológico para permitir modelagens e previsões mais precisas e antecipadas.
4. Planejamento Urbano e Rural
Revisão e atualização dos planos diretores municipais para garantir que áreas de risco e de proteção ambiental não sejam mais ocupadas e que as comunidades desfavorecidas tenham acesso a moradias dignas e seguras.
5. Educação e Capacitação
Desenvolvimento de programas permanentes de sensibilização, formação e educação sobre riscos ambientais e estratégias de mitigação, envolvendo a sociedade civil em processos de planejamento e decisão.
6. Colaboração Interinstitucional
Promoção de uma maior integração entre as diversas esferas de governo e a sociedade civil para a implementação de políticas de prevenção a desastres, garantindo que a política de um município não interfira negativamente na capacidade de outro.
7. Planejamento Regional
Adoção de um planejamento regional que considere a interdependência dos municípios e promova ações coordenadas para proteção ambiental e redução de riscos.
8. Reconstrução
Reconstrução econômica dos municípios focando na melhoria social e na redução das desigualdades da população. As cidades provisórias previstas não devem se tornar definitivas, devendo ser construídas considerando os aspectos de dignidade e salubridade das habitações e condições de urbanização e saneamento adequadas, acompanhadas por entidades capacitadas.
9. Políticas e Ações para descarbonização
Implementação e reforço das políticas públicas voltadas para a redução das emissões de gases de efeito estufa, promovendo a transição para fontes de energia renovável e incentivando práticas sustentáveis em todos os setores da economia. É essencial fomentar a adoção de tecnologias limpas, a eficiência energética e a mobilidade sustentável, além de fortalecer a legislação ambiental e criar mecanismos de incentivo fiscal para empresas e cidadãos que adotem práticas de descarbonização. O desenvolvimento de projetos de reflorestamento, recuperação das matas ciliares e de áreas degradadas também deve ser priorizado, contribuindo para a captura de carbono e a melhoria da qualidade ambiental.
UM CHAMADO À AÇÃO
A ABES/RS reafirma seu compromisso com a população gaúcha, colocando-se à disposição para colaborar com os esforços de reconstrução e prevenção de futuros desastres. É fundamental que aprendamos com os eventos recentes e que todos os níveis de governo, juntamente com a sociedade civil, trabalhem de forma coordenada para garantir um futuro mais seguro, resiliente e sustentável para todos.
Porto Alegre, junho de 2024.
Paulo Robinson da Silva Samuel – Presidente