Publicado originalmente no site Poder 360
Relatório deixa questões essenciais
Balança pende muito para o privado
Texto atual concentra poder na ANA
Brasil tem bons exemplos de PPPs
Por RUBENS NAVES e GUILHERME AMORIM CAMPOS DA SILVA
O Novo Marco Legal do Saneamento Básico está prestes a ser votado na Câmara dos Deputados. Esta notícia, que deveria ser alvissareira –pela perspectiva de avanços numa área fundamental para a cidadania brasileira e o progresso socioeconômico do país–, revela-se, no entanto, causa de preocupação.
Em sua atual versão, o Projeto de Lei 3261, que propõe o novo marco regulatório para o setor, se baseia numa visão privatista que poderia parecer inovadora e promissora nos idos dos anos 1980. Hoje, diante da experiência acumulada mundo afora nas últimas décadas, é irrealista a crença de que a provisão de água e esgoto em um país de extensão continental, com renda per capita média para baixa e enormes desigualdades possa se universalizar de modo eficiente, eficaz e sustentável sob a liderança quase exclusiva da iniciativa privada.
O desafio que se impõe aos formuladores do novo marco do saneamento é superar os 2 antigos modelos –estatizante e privatizante– que já se mostraram incapazes de suprir satisfatoriamente essa demanda social básica, que é também fator vital de desenvolvimento socioeconômico. Essa tarefa só será cumprida por meio de arranjo legal pragmático, compatível com as melhores experiências brasileiras e internacionais, propiciador de sinergia entre poder público, iniciativa privada e sociedade civil.
É preciso criar um novo marco que estabeleça segurança jurídica e, ao mesmo tempo, dotado de flexibilidade para permitir diferentes formas de parceria país afora, conforme as situações, demandas e possibilidades de cada região. O atraso do país na área do saneamento e a urgência de soluções para esse problema não permitem o desperdício de atuais e potenciais agentes colaboradores, recursos, alternativas de financiamento, boas experiências e novas parcerias. E a costura de uma legislação eficaz deve ter como uma das prioridades que se evitem novos riscos de questionamentos e revezes jurídicos –por parte, por exemplo, de Estados e municípios– que dificultem a continuidade dos projetos e os investimentos de longo prazo requeridos pelo setor.
Infelizmente, nenhum desses desafios encontra-se superado a contento no atual texto do projeto de lei relatado pelo deputado Geninho Zuliani (DEM-SP). Da forma em que se encontra, o PL 3.261 faz pender a balança excessivamente para o lado da iniciativa privada, inviabilizando arranjos existentes, e em vários casos –como o de São Paulo e da Sabesp –, bem-sucedidos entre estados e municípios. Algo que, além de forçar a substituição de modelos exitosos, aumentado incertezas e riscos em regiões hoje bem atendidas, abrirá novas frentes de disputas na Justiça com a eliminação do contrato de programa. Isso porque, certamente, nem todos os entes federativos concordarão em abrir mão de firmar as parcerias que considerem mais vantajosas, inclusive com outros entes da Federação – e terão no texto da própria Constituição um lastro bastante firme para sustentar a defesa desse direito.
Outro ponto central do modelo apresentado pela versão atual do projeto é a concentração de poder regulador numa só instância federal. Se aprovado o texto, a Agência Nacional de Águas (ANA), apesar do conceito indeterminado de “normas de referência”, poderá se impor sobre instâncias dos poderes públicos estaduais e municipais tanto em relação a definição de critérios e normas, acompanhamento de contratos e projetos, julgamento administrativo de demandas e conflitos. Irá se tornar, na prática, um órgão formulador e controlador de políticas públicas concernentes a uma pluralidade de condições regionais e locais, extremamente centralizado e desprovido da lastro democrático-eleitoral.
Há três décadas, no auge da crença nas fórmulas privatizantes, a Inglaterra foi o primeiro país a privatizar o saneamento básico. Hoje a experiência inglesa revela problemas típicos de modelos de privatização radical, especialmente num setor como o saneamento, propício a monopólios: contínuo descumprimento de metas de aumento de eficiência e redução de desperdício, trajetória ambiental insustentável, enormes lucros para executivos e grandes acionistas e tarifas reajustadas cerca de 40% acima da inflação em relação aos preços cobradas até a privatização.
Diversas experiências internacionais demonstram que a privatização –que a curto prazo oferece discurso político persuasivo, fonte de recursos para a gestão pública e boas oportunidades de negócios para empresas e investidores– frequentemente se torna, a médio e longo prazos, prejudicial para a maior parte da sociedade. Situação que já motivou a reversão de privatizações de serviços de saneamento básico em várias partes do mundo, como registra o site remunicipalisation.org.
Nos Estados Unidos, referência central em matéria de crença no valor da iniciativa privada, a maior parte da população é atendida por serviços públicos de saneamento. Tanto nos EUA quanto na França e na Alemanha, valores recebidos por entes estatais na década de 1990 em processos de privatização de partes do setor de saneamento tiveram de ser investidos pelo próprio poder público para resolver problemas causados pelo modelo privatista.
Quer dizer que a iniciativa privada deve ser excluída do esforço brasileiro para universalizar o saneamento básico? De modo algum. O setor privado é agente indispensável como parceiro do Estado e da sociedade para essa que é uma das tarefas nacionais mais urgentes e decisivas.
Uma nação que pretende avançar e se desenvolver não pode aceitar que um quarto da população não tenha acesso a água tratada, metade não tenha coleta de esgoto e que grande parte do esgoto coletado não seja tratado. A quantidade, a gravidade e os custos dos múltiplos problemas decorrentes dessa situação são intoleráveis, uma sabotagem gigantesca de potenciais e recursos humanos e naturais que, enquanto prosseguir, comprometerá o futuro do País. Para citar apenas uma evidência do absurdo que é a perpetuação desse quadro, estudos mostram que, para cada real investido em saneamento, aproximadamente dois reais são economizados em gastos com problemas de saúde.
Enquanto o novo marco regulatório não vem, novas e promissoras formas de parceria vão sendo criadas Brasil afora. No final de novembro, por exemplo, uma Parceria Público Privada (PPP) foi firmada entre o governo do Rio Grande do Sul e uma empresa privada para fornecimento de serviços para universalização de coleta e tratamento de esgoto na Região Metropolitana de Porto Alegre até 2030. Não se trata de uma privatização, pois o operador dos serviços continuará sendo público. O valor inicial do contrato em termos de investimento público era de R$ 9,6 bilhões, mas devido à concorrência entre as empresas que o disputaram, caiu para R$ 6,6 bilhões.
Tanto os representantes do governo gaúcho quanto da empresa vencedora do leilão defenderam que o texto do Novo Marco Legal do Saneamento Básico seja aprimorado no sentido de favorecer esse tipo de parceria público-privada. Nas palavras do secretário estadual de meio ambiente e infraestrutura, Artur Lemos Junior, “é preciso que o novo marco seja uma evolução, e não uma ruptura”.
Para cumprir o papel que o Brasil precisa, a nova legislação organizadora do setor de saneamento básico deve prover sinergia entre o poder público e a iniciativa privada, fortalecer o participação da sociedade civil de modo a reforçar o controle social, aumentar a segurança jurídica para projetos, parcerias e investimentos, permitir arranjos variados, inovadores e adequados às diversas demandas e condições regionais e locais, e viabilizar novas fontes e formas de financiamento.
O atual texto do PL 3.261 está longe de dar conta desses desafios. Por isso, precisa ser aperfeiçoado, até porque o Estado brasileiro poderá sempre ser demandado, inclusive perante órgãos internacionais, em decorrência da violação de sua obrigação de promover o saneamento.
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